Pandemia e Moda | reflexão coletiva
Para mim a grande questão dos últimos tempos: Sustentabilidade e Moda num mundo que está a mudar.
Mas está mesmo o Mundo a mudar? E estamos mesmo nós a acompanhar a mudança?
Fará sentido falar de Sustentabilidade no meio de uma pandemia mundial, como ninguém ainda experienciou em vida? O que estamos a pensar? Estaremos a refletir sobre a forma como vivemos? Ou será que estamos tão absorvidos em nós, nos nossos empregos e na preocupação com a nossa família, que não resta tempo para pensar no futuro?
Antes de avançar para o futuro, talvez faça sentido refletir em como aqui chegámos.
A proposta é falar sobre Moda. Mas vivemos todos num único planeta. Com fronteiras físicas e com limites. Comecemos por Moda, mas talvez faça sentido extrapolar para outros setores de atividade.
Pode uma marca de moda ser relevante nesta altura tão complexa?
SETOR MODA – DIMENSÃO ECONÓMICA
O Setor do vestuário, moda e luxo, segundo estudo da consultora Mckinsey, no período de 2003 a 2013 superou todos os outros setores da economia mundial em termos de desempenho, ultrapassando inclusive o setor das tecnologias e telecomunicações.
Em termos de crescimento anual do setor e segundo o site Statista antes da crise do COVID-19, esperava-se um crescimento de 1,3 mil milhões de USD em 2015, para 1,5 mil milhões em 2020. Estes valores demonstravam um aumento mundial da procura por roupa e sapatos, sendo o maior mercado mundial os 28 estados membros europeus (valores anteriores à saída do Reino Unido da União Europeia).
Segundo o site Fashion United, o valor global da indústria da moda é de 3.000 biliões de USD.
SETOR MODA – DIMENSÃO SOCIAL
Thomson Reuters Foundation/Surasti Puri
Mas a Moda não se trata apenas de uma questão de números. Por trás do que vestimos encontram-se pessoas. Como nós. Mães, pais, filhas e filhos. Estima-se que a indústria empregue diretamente entre 25 a 60 milhões de pessoas. A maior parte mulheres, não caucasianas, entre os 18 e os 24 anos de idade.
Desde a Revolução Industrial que procuramos uma fórmula mágica que nos permita vender mais. Uma das formas foi procurar países dispostos a entregar pessoas em troca de dinheiro. Países que tiveram de ir baixando o custo das pessoas, para assegurar emprego aos seus habitantes. Para que as produções não fossem entregues a qualquer outro país. Com pessoas mais baratas.
Esta competição levou a que não se criasse valor nestes países. Onde embora exista produção, não há dinheiro para investimento em bens comuns e sociais. Não há acesso a saúde. A edução. A água potável.
Os bens essenciais ficam mais caros. Não há forma de aumentar salários que permita vidas dignas (living wage).
Não interessam nomes nem procurar culpados.
O custo baixo dos transportes ajudou. A globalização facilitou. A oferta aliciou. A procura validou.
SETOR MODA – DIMENSÃO AMBIENTAL
A automação permitiu sermos mais rápidos a fiar lã. Quando fomos mais rápidos na fiação, acabou a lã e voltámo-nos para o algodão. E quando as matérias primas naturais não nos chegavam em quantidade suficiente, chegaram as fibras artificiais.
Fertilizantes, pesticidas e fungicidas deram o boost para a produção do algodão. Permitiram melhorar safras, entregar mais algodão. Satisfazer as produções. Mas foi preciso mais. Desflorestámos. Florestas novas, antigas. Captadoras de dióxido de carbono: um dos gases mais relevantes do efeito estufa.
Para dar espaço ao algodão, mudámos pessoas. Não só por falta de espaço, mas porque lhes enriquecemos os lençóis freáticos e aquíferos com pesticidas. Água essencial à vida, que se transformou em morte. Não só deixámos pessoas à sede, mas também tantos outros seres vivos. Alterámos ecossistemas de forma a que algumas espécies não se conseguiram adaptar a novos ambientes, acabando em muitos casos por levar à sua extinção.
Criámos uma cadeia de valor tão extensa, que nem sequer conseguimos medir o real impacto ambiental. Globalizámos produções, mas deixamos que as matérias primas estivessem apenas ao alcance de alguns. Ficámos reféns do Oriente.
Enriquecemos oceanos com microplásticos que entram em várias cadeias alimentares. Incluindo a nossa.
Compramos tanto, a tão baixo custo, que deixamos de usar o que compramos até à exaustão. Deixamos de passar roupa entre família. Deixámos de reparar. E começámos a enviar para o lixo. Cerca de 3/5 das roupas que compramos são enviadas para aterro após um ano de terem sido produzidas.
Segundo os dados da Fundação Ellen McArthur, mais de 500 biliões de USD são perdidos por subutilização e falta de reciclagem.
A DIMENSÃO CULTURAL (OU O PODER EMOCIONAL DA MODA)
Ilustração Eesha Anchan para Loved Clothes Last – Fashion Revolution
E porquê?
Queiramos ou não, as roupas que vestimos têm um impacte na forma como nos sentimos. O poder emocional da Moda. Algo tão forte, que estamos dispostos a gastar dinheiro em peças de roupa (quase) iguais. Um vício. Alimentado por marcas e coleções semanais, redes de influenciadores a vender sonhos de vidas perfeitas ao preço de um vestido.
Culturalmente as redes sociais estão a mudar os nossos comportamentos. Deixámos de comprar o que nos fica bem, adequado ao nosso corpo e estilo de vida e passámos a comprar as sugestões de pessoas que não conhecemos pessoalmente, mas que acompanhamos no dia a dia. Passamos a não refletir a nossa personalidade e o nosso estilo, mas o de outros.
O valor emocional do que compramos é baixo. Não queremos reutilizar. Não queremos passar de geração em geração. A qualidade é tão baixa e temos uma ligação tão fraca, que estas roupas passaram a descartáveis.
Estamos a desperdiçar recursos naturais. Estamos a desperdiçar o trabalho de pessoas. Estamos a desvalorizar o tempo que nós necessitamos para gerar riqueza e comprar estas peças. Estamos a desvalorizar o que de mais precioso temos – nós.
POR PORTUGAL (também poderia chamar governance, mas perderia alguns leitores aqui)
No início de 2019 uma Comissão Ambiental do Parlamento Britânico lançou um documento global do setor dedicado à região: “Fixing Fashion”. Com uma investigação profunda, com inputs de várias entidades relevantes do mercado Britânico, de forma a conseguir alcançar um setor mais forte interno e alavancar marcas de moda nacionais.
Alterações que reforçam a necessidade de pensamento estratégico, legislação dedicada e cooperação.
Em Portugal o setor emprega cerca de 138.000 pessoas (Diretório ATP, 2019) e representa cerca de 8% de volume de negócios da Industria Transformadora e 10% das exportações nacionais.
A nossa indústria é reconhecida internacionalmente, mas não existem ainda marcas nacionais fortes a complementar as atividades de produção. A Direção Geral das Atividades Económicas, na sua sinopse de 2018 da Industria têxtil e vestuário, refere a necessidade de um plano de ação a longo prazo para a criação de marcas portuguesas. E o apoio às já existentes? Será que não faria também sentido?
O PAPEL DA MARCA NUM PERÍODO DE INCERTEZA
As pessoas compram marcas ou produtos? Estamos a evoluir para uma maior consciencialização onde a sustentabilidade é fator decisivo na compra?
Hoje não há dúvidas da necessidade premente da responsabilidade de utilização das ferramentas de Sustentabilidade na produção. Esta questão é transversal a todos os setores de economia.
Olhando para a literatura do início de 2019 este era dado adquirido. No entanto, o final do ano trouxe dados adicionais: foi declarada emergência climática. O número de eventos extremos climáticos teve o seu pico a partir de Setembro. Estamos todos em casa devido a uma pandemia mundial que já matou milhares de pessoas em todo o Mundo.
Segundo os dados do Pulse of Fashion de 2019 o aumento da consciência do lado dos consumidores para a questão da Sustentabilidade reside em duas questões principais: as alterações climáticas e os desastres naturais no Mundo. Tendo em consideração todo o ano de 2019 e o início de 2010, certamente que esta questão estará na ordem do dia.
O papel da marca, os seus valores e a sua resposta a crises como as que estamos a viver são relevantes, como nunca antes. A humanidade na forma como lidam com a sua cadeia de valor, a transparência e a solidariedade, vai permitir às marcas chegar às pessoas de forma orgânica. Vai também dar exemplos inspiracionais a quem os segue.
As marcas que estiverem a entregar serviço público nesta fase, serão as do Futuro. Mesmo que incerto. Mesmo com menor volume. Mesmo que diferente.
“Abundância é um estado criativo.” [1]
Que a criatividade lidere todos nós nesta fase de incerteza. Que nos permita fortalecer laços com as pessoas agora. Para que no futuro, na hora da compra, sejam a estas que irão recorrer graças aos laços criados neste momento de incerteza.
Este artigo foi escrito a mais do que a duas mãos. O desafio foi lançado nas redes sociais da BASEVILLE e a resposta foi muito positiva. Todos os inputs foram incluídos no processo de escrita. O primeiro artigo colaborativo da Comunidade BASEVILLE.
Todas as respostas deram-me esperança para continuar (por vezes também coloco tudo em causa).
Obrigada.
Com amor,
Ana
Fundadora e CEO BASEVILLE
Partner Fashion Catalyst
Desafio: responder às seguintes perguntas com o tema – Sustentabilidade e Moda num mundo que está a mudar.
- Mas está mesmo? Estamos todos?
- Será que sobra tempo para pensar no futuro? E será que é relevante?
- Qual o papel da Moda nesta fase mais conturbada?
- Podem as marcas Sustentáveis ajudar a “salvar” o mundo?
Respostas:
– Dora Rebelo @_newuproject_dr
Podem ajudar sim!! Acredito e sinto que quanto mais marcas nos convidarem a refletir e forem exemplo vamos querer seguir e fazer parte da mudança. Termos tempo para pensar a compra para nos apaixonar por uma peça e para a podermos comprar quando fizer sentido faz a diferença. Dessa forma queremos que as peças durem para sempre no armário e vivemos a moda de uma forma mais saudável e acredito até que tiramos mais prazer da experiência do que numa compra por impulso.
– Cátia @lady_in_green_by_catia
Eu acredito que sim. Acho que esta é uma ótima altura para repensar hábitos de consumo e fazer a transição para um consumo mais consciente. Acredito que tanto as marcas mais conscientes e responsáveis como os consumidores que já são mais conscientes estão a fazer um excelente trabalho a educar e a inspirar as pessoas a dar mais valor ao armário que já têm e fazer compras mais pensadas. Quanto mais falarmos disto, mais pessoas conseguimos inspirar a juntar-se à comunidade.
– Isabel Rocha @isabelprocha
Só um pensamento espontâneo e de quem está pelo meio do seu teletrabalho: a reciclagem podia não ter de ser sempre alvo do processo em si, com gasto de recursos. Tantas as marcas que têm peças de coleções anteriores giras e que alguém já não gosta. Uma secção numa ZARA ou assim, com roupa readquirida em 2a mão? Quem quisesse aproveitar…!!! Isto sim é repensar o consumo da própria marca. Não é um income monetário gigante, mas promove recircular os produtos!
– Ana Paula TuTui @anapaulatutui
Acredito que a sociedade seja feita das preocupações de pessoas diferentes, que entendem os problemas e o mundo de formar diversas. Assim, sempre existirá espaço e relevância no que toca a questão da moda, pois movimenta a economia de modo muito intenso, articula questões de sustentabilidade e além disso, a moda de forma geral mexe com questões emocionais, de identidade, questões relacionais que importam sempre, uma vez que interferem na autoimagem, confiança que alguém pode ter de si próprio. Em tempos difíceis acredito serem ferramentas ainda mais empoderadoras, pois para muitas pessoas a questão da roupa, de como uma pessoa se apresenta para o mundo pode fazer dela mais forte e confiante para passar pelos mesmo problemas daqueles que não conhecem o poder de se expressar e se conhecer. Cabe aos que se importam e entendem a importância dos diversos âmbitos da moda, reinventarem-se e continuarem a trabalhar para que as coisas melhorem.
Em relação à união das marcas, parece ser o momento mais oportuno para mostrar que juntos podemos atingir mais pessoas e fazer mais diferença, estamos todos interconectados de diversos modos e somos interdependentes em qualquer setor econômico, social ou cultural. Em tempos difíceis ideias incríveis veem à tona, descobertas, movimentação… é um bom momento para trabalhar e unir-se às causas que nos são mais caras.
– F. Russo @kikarussomartins
Honestamente, acho que passa por uma redução de consumo. Peças intemporais, produzidas em cada país, proporcionando boas condições aos trabalhadores. As peças devem durar e ser de boa qualidade o que aumenta, certamente o preço mas as pessoas acabarem por comprar menos. Não usamos tudo no nosso armário além de que a manutenção do mesmo bem como o excesso de espaço necessário são coisas a ter em mente. Doei grande parte do que tinha e tenho um armário pequeno. Lavo menos coisas, menos trabalho para arrumar e manter. Penso que numa escala global e não apenas na indústria da moda, este será o caminho.
– Tânia Sérgio @estica
A moda é fundamental para mudar mentalidades não só porque é das indústrias com maior influência direta nos consumidores mas porque é das indústrias mais poluentes. Não nos podemos esquecer do início da cadeia… desde a agricultura (quanto se podia falar do monopólio da Monsanto, por ex.), às condições desumanas dos trabalhadores nas produções massivas de roupa, ao consumo desenfreado… para não falar da (pouca) longevidade das peças e do desperdício têxtil (até na fase de produção!).
É preciso repetir estas coisas mil vezes, para que as pessoas entendam verdadeiramente a mensagem e percebam o poder do consumidor.
Acredito que a situação atual possa trazer mudança. Há sempre o risco de querer fortalecer economias a qualquer custo (especialmente em períodos difíceis)
Mas acredito mesmo que o mundo não pode continuar indiferente depois de uma crise global como esta.
É preciso repensar tudo, em todas as áreas. Não podemos continuar a viver em negação.
A moda é um excelente ponto de partida – assim de repente não me lembro de uma indústria tão influente. O consumo de moda é emocional e isso é fulcral como alavanca de mudança.
– Cristiana fundadora marca Sobri @sobri.porto
O mundo está a mudar, neste momento estamos perante uma nova forma de existir. A sustentabilidade, responsabilidade e consciência na área da moda, torna-se cada vez mais pertinente e essencial, porque o consumo não vai deixar de existir, mas pode e deve ser cada vez mais consciente e informado.
Estamos numa fase onde é essencial refletir e como marcas responsáveis, temos o dever de promover essa reflexão aos nossos clientes e comunidade – porque isso é que trará as mudanças necessárias e poderá ser o contributo positivo da área da moda para ajudar a “salvar o mundo”.
– Sara Pinto da Silva @capsula.ms
Olá!! Sinto verdadeiramente que os consumidores estão a mudar os seus hábitos de compra. Sinto que há uma vontade de saber mais e de adotar uma postura mais consciente na sociedade. E não é só uma moda passageira, é algo que veio para ficar. As marcas sustentáveis, com reforço para o seu carácter social, económico ou ambiental podem e estão com certeza a fazer algo! Estão a respeitar pessoas (a que compra, a que faz, a que entrega, a que vende…) e estão a respeitar a matéria prima. É uma moda diferente, uma moda mais humana e que também respeita mais todo o processo de manufatura. E depois, não podemos esquecer todos os esforços feitos a nível da inovação; novos materiais, novas formas de tingimento, processos de reciclagem, etc. que têm em vista minimizar o impacto negativo no meio ambiente.
– Márcia Nazareth fundadora Nazareth Collection @marcia_nazareth
VAI HAVER UMA MUDANÇA ECONOMIA.
UMA TRANSFORMAÇÃO. VAMOS QUERER MUDAR A NOSSA ROUPA “INTERIOR”
Vão ser 3 meses sem comprar nada de novo. E daí? Não foi preciso. Vai ser bastante tempo a testar novos hábitos.
Tudo isto veio nos transformar. Esta clareza, faz com que tomemos novas atitudes.
Este é o melhor momento para deixar de comprar marcas que não estão alinhadas com esta forma de pensar mais consciente.
Vamos passar por um período de re-avaliacão dos valores.
Este é o momento de MOSTRAR A ALMA DA MARCA!!
Não vai dar para manter os padrões como estavam. Abundância é um estado criativo.
E consciente de um novo coletivo. Responsabilidade coletiva.
Quem está a ter esta consciência? Quem esta alinhado com os bons princípios?
Quem esta a comunicar de uma forma autêntica? Que valores tu tens?
Sim, o papel das marcas sustentáveis é agora maior do que nunca. Elas vão ter uma voz enorme quando se voltar a consumir.
FELIZ POR VER TANTAS MARCAS SUSTENTÁVEIS A APOIAR-SE MUTUAMENTE
– Sara Mira @dona_samira
Eu penso que a questão não estará tanto se marcas sustentáveis possam ou não ajudar. Acho que é óbvio que ajudam! A questão p mim é nos tempos em que vivemos, é a premência de uma cooperação global. Uma das principais lições que tiramos desta pandemia que vivemos é que sozinhos não conseguimos. E o mesmo se aplica à indústria (neste caso) da moda. Penso que caso não haja uma mudança radical na regulamentação global de forma a permitir que todos os players estejam na corrida com as mesmas ferramentas, será muito difícil e ineficiente uma mudança. Passar a decisão apenas para o consumidor parece-me injusto e ineficiente. Com uma regulamentação mais apertada, para que a indústria garanta não só a segurança e saúde dos seus trabalhadores bem como o compliance total com diretivas ambientais, se conseguem mudanças significativas e urgentes. De resto, devemos continuar sempre a informar e sensibilizar os consumidores mas lembrar que esse caminho será muito longo e talvez o tempo escasseie.
– Ana Moreira @anamoreirajewellry
O Mundo está a mudar. A consciência do que é relevante e acrescenta valor, o que nos motiva e o impacto das decisões na nossa vida, na nossa comunidade, no nosso planeta. Todos a fazer a mudança, mas ao seu ritmo. Será que depois, tudo vai voltar ao que era antes? O papel das marcas sustentáveis é agora mais importante do que nunca. Criar consciência coletiva. Estimulando a reflexão, questionando, informando e inspirando.
[1] Márcia Nazareth